Foi logo depois do almoço.
Começou de leve.
Os cabelos brancos me convidaram a pensar.
Testei, pensei, tentei entender a extensão e a intensidade.
Continuei caminhando, mas não tinha a certeza de chegar.
Infarto. Ele mesmo. O agudo do miocárdio.
Só podia ser.
Teimoso, continuei me testando.
Na verdade, já sabia que não teria muita chance mesmo e correr para o socorro poderia abreviar meu tempo.
Conversei menos, diminuí os passos e, meio sem graça, olhei para o céu meio que pedindo pela minha permanência.
O tempo continuou passando, cheguei no trabalho e percebi que aquela sensação e também a dor já não estavam mais presentes.
E agora estou aqui.
Confesso, talvez por medo de me julgar, me condenar, que nem refleti muito.
Fiquei tentando entender o que era aquilo.
Tateei hipóteses e só consegui pensar que aquilo era dor de saudade, de ausência.
Senti saudade de te esperar.
Saudade de ficar horas e horas plantado na porta da minha casa esperando você cumprir a promessa de me pegar para almoçar.
O vento arrasava o penteado que preparei só para você.
Meus colegas me chamavam para jogar bola.
Via o Viação Andrade Costa passar inúmeras vezes.
Decidi contar um por um.
Quinze? Vinte? Uns trinta? Todos.
Até que minha mãe veio me buscar com o prato e o colo meu de todo dia.
E foi assim mais um dia.
Senti saudade daqueles febres loucas na época do Natal.
Você nem ficava sabendo.
Eu sempre passava o fim do ano entre a dor e a saudade.
Na verdade, ficava com a dor e a saudade. Com a dor da saudade.
Saudade de usar suas roupas enormes.
Saudade de colocar seus sapatos.
Cheirar as suas meias.
De te ouvir falando uma língua estranha.
De te olhar.
Senti saudade até dos quase trinta dias que fiquei sem andar.
Sim, fiquei sem andar.
Você se foi e fiquei sem pernas.
Você era o meu caminho, meu ídolo, meu amor.
Mas você sumiu.
O colégio ficou chato.
O almoço ficou sem gosto.
Nem de refrigerante eu gostava mais.
Suas roupas sumiram do meu olfato.
Sem você, sem sentido.
Senti saudade daquele dia que te vi.
Te vi me vendo.
Eu jogava bola na rua e um carro lento se aproximava.
Fiquei torcendo para aquele carro passar rápido e para voltar ao jogo.
O carro parecia torcer por mim também e parava para ver o que aquele menino ia aprontar.
Será que ele ia driblar, se livrar dos paralelepípedos e bater para o gol?
Não driblei.
Parei para o carro passar e perdi a jogada.
Parei para te olhar.
Parei para te encarar.
Parei para sorrir alto, gargalhar, gritar para o mundo que era você que ali estava.
Parei de viver por uns instantes.
Pernas trêmulas, braços quase adolescentes crescendo sem controle e seus olhos nos meus olhos.
Meus olhos nos seus olhos.
Você ainda no volante e eu sem controle.
Cair no chão e não andar de novo?
Caminhar firme para sentir seu perfume em um abraço?
Hoje senti a dor de não sentir mais a mesma dor há tanto tempo.
Senti o peso de sua grafia nas cartas.
Senti o peso de seu sofrimento nas palavras.
Você sofreu, eu quase não tive motivos para viver.
Nos demos muito bem, mas sempre convivi, mesmo nos melhores dias dos outros anos, com a incerteza.
Será que ele vai sumir de novo?
Quando vou recomeçar minha busca por ele?
A incerteza era tudo o que você não oferecia no início.
Confiava no meu herói.
Confiava tanto nos seus passos que usava sempre seus sapatos.
Queria ter sido igual e sou feliz por ser diferente.
Não era infarto, era saudade.
Não era a morte, era a lembrança da vida.
