Rodrigo foi a primeira pessoa que consegui chamar de craque.
Jogava fácil.
Era rápido, driblador, inteligente e batia muito bem na bola.
Na verdade, vimos pouco ele bater na bola.
De tão bom, Rodrigo levava a bola até a área e apenas colocava a amada para deitar na rede.
Ele era suave com a bola.
Jaime era um grande goleiro.
Chileno que veio para o Brasil para escapar das mortes, Jaime era firme e nos dava a segurança necessária.
Lá na frente estava eu.
Corria feito um maluco.
Era maluco a ponto de dividir todas e entrar com a bola em uma das divididas.
Magrinho, franzininho e bravo em quadra.
O primeiro jogo daqueles meninos de nove anos foi contra um colégio que chamávamos de Colégio do Carmo.
Recebemos o Carmo na nossa casa.
O Santa Doroteia estava lotado.
Minha mãe estava lá na arquibancada.
O jogo terminou com um tranquilo 7 a 2.
Marquei três ou quatro.
Éramos todos meninos e nosso craque menino sentiu o peso do jogo.
Rodrigo não rendeu, mas o time era bom.
Uma semana depois estávamos nós no Carmo.
Pouco entendíamos sobre saldo de gols, mas sabíamos que até podíamos perder.
Perder?
Perder era coisa de louco para quem achava que o mundo era o pátio do colégio.
Perdemos.
6 a 5.
Marquei mais três.
Minha mãe era a mais orgulhosa das mães.
E aquele time começava a ganhar alguma fama no colégio.
Começamos a treinar e passamos a fazer nossa brincadeira virar ofício.
Um dia um cara estava lá conversando com o Rodrigo.
O cara depois foi falar com o Jaime e ficamos nós três ali.
O cara, meus amigos e um cartão na mão de cada um.
Faminto, só queria sair rápido para almoçar.
Deslumbrado, Rodrigo falava para todos que íamos jogar no América.
Não fomos.
Aquele cartão se perdeu nos nossos sonhos e nossos sonhos começaram a mudar.
A vida ficou melhor para o Jaime e para a Maria da Paz, adorava o nome da irmã dele.
Rodrigo foi morar no interior e minha casa passou a ser distante do Santa Doroteia.
Aqueles momentos e aquele jogo contra o Carmo ficaram na minha memória.
Vivi outros casos tão marcantes com a bola.
A seleção da AABB foi marcante.
Mumu, o treinador, começou a formar um time.
Perguntou a cada um a posição preferida.
Treinei bem a primeira na minha ala direita.
Aprendi cedo a bater bem na bola e sempre gostei de cortar para a direita acertar um cruzado.
Mas no segundo treino fui para a esquerda.
Para a esquerda?
Não gostei, mas treinei.
De pivô no terceiro treino e de fixo no quarto.
Cheguei a imaginar que o gol era um caminho natural.
Nunca repetia minhas posições.
Lamentei comigo mesmo, mas era um escravo maluco em quadra.
A véspera do anúncio do time escolhido pelo Mumu foi um dia especial.
A AABB receberia o Sem Compromisso Futebol Clube.
Cheguei cedo.
Veria meus ídolos.
Aos 16 anos veria Éder, Marcelo e Nelinho contra o time do meu clube.
Claro que aproveitei a presença do Mumu no bate bola para tentar ficar perto dos meus gênios.
E não é que sobrou para mim?
Faltou um, faltou o outro e o time de veteranos passou a ter um adolescente em campo.
Adorava o campo, mas jogava Salão.
E fiz um meia pela direita.
Nelinho, para quem não sabe, gostava de jogar por ali.
E da meia direita, sendo vigiado por ele, percebi que, após um passe ele viria para me apertar.
Nem precisei olhar para a lateral esquerda e acertei uma linda inversão para o Marcelo, lateral do dia.
Seu Mané, gigante, imenso, virou para mim e disse: "Grande bola, garoto".
Claro que perdemos.
Vi Nelinho cochichar que ia bater um elevador na próxima falta.
Vi o elevador subir na barreira e cair no canto do gol.
O jogo foi um sonho.
Nunca perder foi tão gostoso.
E na hora da lista dos selecionados para a disputa da FECEMG vi que meu nome não estava entre os alas.
Nos fixos também não e muito menos pivô.
Fiquei triste, abatido.
Mas a surpresa foi quando Mumu fechou a lista falando que estava convocando um polivalente: eu.
Ele gostou de mim desde a primeira vez e já tinha se decidido por mim.
Trabalhador, escravo, maluco e pau para toda obra.
Um dia antes do meu aniversário saí da minha seriedade e dei uma bela caneta no meu peladeiro marcador.
Humilhado e ridicularizado pelos colegas, percebi que o adversário bufava no meu encalço.
Teria um problema.
Em jogada individual, carreguei a bola da direita para a esquerda.
Passei na corrida por mais alguns, mas o humilhado continuava babando pelo meu tornozelo.
Escapei dele, mas travei o pé em um buraco no campo.
Minha perna parou e meu corpo girou.
Passei meu aniversário no gelo.
Passei os outros dias nos consultórios.
Dr. Ângelo Lazaroni e depois Dr. Ronaldo Nazaré.
Sofri com meu ligamento cruzado anterior todo estourado.
Mas voltei.
Fui recebido de braços abertos pelos meus colegas de time.
Mas todos perceberam que eu ainda tinha medo.
Não batia mais de frente.
Tentava enganar e rolava a bola para fugir do medo da dor.
Pedi para sair.
Apaguei minha luz.
O tempo cuidou, curou.
Disputei outros campeonatos.
Convivi com minha única distensão e minha única contratura.
Tomei bico no joelho, mas estendi a mão para o idiota que quis me pegar.
Fomos campeões no Sindicato dos Bancários.
Na bela e velha ala direita fiz o gol do título em um carrinho com o goleiro batido.
Até que o outro joelho estourou e outra cirurgia.
Dr. Lúcio Flávio fez milagre.
Estourei todos os ligamentos, todos os feixes e muitas lesões no menisco.
Tendo a muleta como parceira, pensei se voltaria.
Voltei.
Realizei meu sonho e vi a família marcar 16 gols na pelada.
Fiz dez e o Danilo fez seis.
Ainda não é chegada a hora de parar totalmente.
Sinto é que não consigo mais competir, não consigo ser rápido e nem maluco.
Nem mesmo bato como já bati na bola.
A derrota de ontem me fez ver que só dá para voltar se for para ser rápido, maluco e competitivo.
Só sei fazer assim.
Só pode ser assim.
Não sei onde está o Rodrigo e espero que o Jaime esteja feliz no seu Chile.
Não tenho mais notícias do Mumu.
Tenho pouco contato com meus amigos do time do campeonato do Sindicato.
Sei que todos eles vão destacar minhas marcas, meu jeito.
Meus sonhos ficaram naquele primeiro buraco.
Meus próximos passos e passes só serão dados se eu estiver forte para não me decepcionar comigo mesmo.
O polivalente não aprendeu a perder.
